FATO – Nós, da esquerda anticapitalista, precisamos entender as
manifestações de ontem para intervir e confrontar ideias e práticas. Porém,
precisamos ter cuidado para não pintar o demônio ainda mais feio do que ele já
é – porque, convenhamos, o bicho é feio! TFP, maçonaria, protofascistas, viúvas
da ditadura, golpistas, moralistas religiosos e laicos, direitistas convictos,
extrema-direita, preconceituosos de todos os matizes e muitos “ingênuos úteis”
protagonizaram as imensas manifestações de ontem (misto de protesto com passeio
de domingo). Manifestações que, entre algumas motivações legítimas e muitas
bandeiras reacionárias e bisonhas, trouxeram à praça pública sentimentos,
ideias e valores difusos, confusos e sem propostas/caminhos resolutivos; e, em
seu bojo, expuseram e alimentaram os mais ignóbeis preconceitos de classe.
Motivos para isso? Há muitos, como, por exemplo, a politização perversa
promovida pelo PT nos anos de governo federal, donde a concessão aos mais
pobres teve como moeda de troca o passivo apoio eleitoral e o abandono das ruas
e, para a burocracia sindical e outros movimentos, a falência da organização
nos locais de trabalho, da base. Estes são motivos que cresceram
assustadoramente na última década e meia. Há, porém, motivos históricos,
estruturais. Dentre eles, o principal talvez seja que, num país de passado
escravocrata e caracterizado pela mais do que secular e renitente
desqualificação política dos populares pelos membros das classes dominantes e
médias, não há como negar que, por trás da aversão ao PT – por mais legítimas
que sejam certas críticas e desconfianças –, palpita o mal-estar e a aversão
que estas classes nutrem aos trabalhadores pobres e, mais recentemente, à sua
pequena ascensão econômica, que teve como resultado sua maior presença/ocupação
em espaços públicos e privados. Além, é claro, de um longo e entranhado
anticomunismo. Pois, afinal, devido à origem, muitos e muitos supõem – alguns,
mais inteligentes e desprovidos de integridade, veem funcionalidade política em
confundir – que o PT seja um partido de esquerda e, portanto, comunista.
QUESTÃO – Essas manifestações, longe de terem sido obra da manipulação
dos meios de comunicação e da conspiração imperialista (como insistem muitos
petistas) – embora, como sempre ocorre quando a direita se move, esses
elementos estivessem presentes –, foram, em sua composição variada, formadas
primordialmente por profissionais liberais, pequeno-burgueses, assalariados de
médio e alto escalão e funcionários públicos (com participação, ainda que
baixíssima, de trabalhadores pobres – ou seja, a massa da periferia das cidades
brasileiras). Nisso, eis um aspecto que pode tornar o bicho menos medonho:
tínhamos homens e mulheres insatisfeitos com a corrupção e a falta de
transparência das instituições e, também, com a política econômica. Ou seja, os
problemas que alimentam o descontentamento e, de algum modo, compõem a carga de
motivos que os empurraram às ruas não são apenas reais, mas, sob diversos
aspectos, são também confluentes àqueles que assolam a massa do compósito
proletariado brasileiro (urbano e rural). Por conseguinte, ainda que eles
estejam embrenhados em ideias e valores da ideologia burguesa (em seu amplo
espectro de matizes), não se pode considerar que façam parte de um campo em que
não há mais disputas a serem travadas. Ao contrário, a unidade dos diversos
segmentos sociais que compõem essas manifestações não vai se sustentar quando
as reivindicações deixarem o campo etéreo e difuso da luta contra a corrupção e
aterrissarem no campo concreto das disputas materiais. Isto ainda não aconteceu,
mas é inevitável que ocorra. E, quando ocorrer, a luta de classes, envolvida (e
escondida) pelo confuso biombo da disputa entre petistas e antipetistas,
exigirá posicionamentos muito mais consistentes e concretos das direções
sindicais e políticas.
Dentre outros motivos, sua emersão ao primeiro plano da luta política é
inevitável porque o governo Dilma fará nova guinada à direita, aprofundando as
medidas de ajuste fiscal e recessivas para apaziguar os ânimos dos capitalistas
(nacionais e estrangeiros) – ou seja, apertará o arrocho sobre os
trabalhadores. Parte dos que saíram às ruas ontem, sem ter clara consciência
disso, gostariam que o governo atuasse na direção contrária – embora, é claro,
não saibam quem poderá fazê-lo –, pois medidas dessa natureza os prejudicam.
Portanto, quando essa unidade se esboroar, a desorientação resultante terá que
ser preenchida pelo esclarecimento e a apresentação de alternativas reais,
concretas, para os graves problemas do país; ou seja, medidas que, ancoradas
nas lutas concretas, afetem a materialidade primordial da nossa existência
social – a estrutura econômica e suas formas de propriedade. Eis uma tarefa
para todos nós: construir uma plataforma unitária que sirva como polo
aglutinador e incentivador de lutas sociopolíticas orientadas pelas demandas do
trabalho.